terça-feira, 2 de abril de 2019

A ação pendular da igreja: entre Moisés, Cristo e os Direitos Humanos

Por Gilvan Monteiro da Rocha

Portugal tem “bom currículo” nos direitos humanos, mas violações persistem
Endereço da imagem na Bibliografia.
E enviou mensageiros à sua frente. Indo estes, entraram num povoado samaritano para lhe fazer os preparativos; mas o povo dali não o recebeu porque se notava em seu semblante que ele ia para Jerusalém. Ao verem isso, os discípulos Tiago e João perguntaram: "Senhor, queres que façamos cair fogo do céu para destruí-los"? Mas Jesus, voltando-se, os repreendeu, dizendo: "Vocês não sabem de que espécie de espírito são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los"; e foram para outro povoado (Lucas 9:52-56).
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 18). 

Começo essa palestra com um tom confessional. Quero confessar o meu pertencimento a uma religião marcada por varias contradições. Sim, a história do Cristianismo, religião a qual pertenço, é uma historia marcada pela busca da compreensão do outro, pela defesa dos menos favorecidos, pela luta por justiça, pelo respeito às diferenças, pelo amparo aos sofredores do mundo; mas também, tenho que confessar, é uma história marcada por perseguição, pela dor, pelo sofrimento e por sangue, muito sangue! 

Mas não estou, nesse momento, me referindo ao sangue dos chamados mártires da fé: Aqueles que, de acordo com nossa tradição, tiveram suas vidas dizimadas simplesmente por crerem em Jesus de Nazaré. Desses falamos sempre. Ao contrário, estou me referindo ao sangue, ao sofrimento e a dor daqueles que foram mortos, perseguidos ou humilhados, por simplesmente recusarem a se submeter à fé cristã, em diversos momentos de nossa historia. Entre esses posso falar desde os pagãos que presenciaram a transformação do cristianismo em religião oficial do império romano durante os séculos IV e V, as mulheres queimadas sob a acusação de bruxaria na idade média, aos hereges que recusavam a submissão à religião oficial mesmo depois da Idade Média, os negros trazidos da África para a América que insistiram em suas praticas religiosas originais, aos índios do novo continente, entre eles, o imperador inca, Atahualpa, morto por Pizarro depois de rejeitar o cristianismo abraçado pelos espanhóis. 

Sim, essa é uma face horrível e estranha do cristianismo, não posso negar! Diante dessa realidade incontestável, somos obrigados a perguntar: o que faz com que uma única religião assuma faces tão distintas e tão estranhas? Quais são os fundamentos de ações tão contraditórias? Sendo Cristo um pacifista, defensor dos direitos humanos, defensor da vida, alguém desprovido de qualquer preconceito ou ódio de qualquer natureza, como poderia uma religião nascida de alguém dessa natureza, assumir formas tão discrepantes? 

Garanto que, no momento, não tenho muitas respostas. Entretanto, gostaria de me deter em algo que acredito ser fundamental em uma discussão dessa natureza: a chave hermenêutica. Ou seja, perspectiva a partir da qual cada grupo que se identifica como cristão interpreta as Escrituras e se orienta. 

Diria que, desde os tempos dos apóstolos o cristianismo teve que lidar com o que chamamos de Antigo e Novo Testamento. No primeiro, um conjunto de 39 livros (nas Bíblias protestantes) que narram desde a origem do mundo, o surgimento da humanidade, o aparecimento de Abraão e a escravidão no Egito de sua família, a saída do povo hebreu do Egito, a passagem desse povo pelo deserto da Arábia, a invasão de Canaã e a destruição ou dominação dos cananeus pelos hebreus, o estabelecimento e consolidação de um reino hebreu em Canaã (atual Palestina), a decadência do reino hebreu e sua dominação sob os babilônios, o pós-cativeiro babilônico e a restauração parcial do reino hebreu durante o império persa, povos que subjugaram o reino babilônico. 

O Novo Testamento, por sua vez, começa com uma biografia de Cristo, contem um livro que conta a historia do inicio e expansão da igreja, as cartas doutrinarias e um livro de profecia. Aparentemente esses dois testamentos se completam, entretanto, existem diferenças de cosmovisão em seus dois principais personagens: Cristo e Moisés. 

 A PERSPECTIVA DE MOISÉS 

Moisés escreveu seus livros no calor do deserto, enquanto liderava o povo em direção a Canaã. Segundo o escritor hebreu Flávio Josefo, Moisés possuía uma sólida formação egípcia, militar inclusive, tanto que sua primeira ação ao sair do Egito foi organizar um exercito com 600 mil homens. A intenção de Moisés era expulsar os moradores da Palestina e implantar ali um reino teocrático com uma solida organização religiosa, onde seria proibida qualquer outra manifestação de crença, senão aquela orientada pelos sacerdotes. A lei mosaica, em parte muito próxima do Código de Hamurabi, por sinal, contem regras rígidas na organização social, politica e religiosa da nação idealizada por Moisés. 

Como o historiador estuda o homem no seu tempo e o teólogo busca compreender o texto dentro de seu contexto, entendo que é preciso compreender Moisés dentro de sua própria realidade e época. Nessa perspectiva, em meio a povos politeístas, implantar um reino monoteísta exigia uma boa dose de força. Até porque o próprio povo hebreu não era exclusivista em sua forma de praticar a religião. Tanto que o que mais motivou o surgimento da profecia em Israel foi o espirito politeísta e inclusivista do povo hebreu. Toda vez que a religião pendia para o ensino de Moisés, os profetas passavam quase despercebidos; toda vez que o povo se tornava mais inclusivista, os profetas se levantavam para chamá-los ao arrependimento. 

Ou seja, o ideal era de uma religião exclusivista, que continha em suas regras a punição para os que transgredissem essa pratica, por colocarem em risco a organização social da nação, inclusive. Outras religiões deveriam não apenas não ser praticadas, mas, nem mesmo, toleradas. Dentro desse contexto, as praticas religiosas estavam intrinsecamente ligadas às praticas sociais, de forma que havia punições previstas em todas as áreas da vida. Vejamos alguns exemplos: 

• “Não deixem viver a feiticeira” (Êxodo 22:18).
• “Se um homem cometer adultério com a mulher de outro homem, com a mulher de seu próximo, tanto o adúltero quanto a adúltera terão que ser executados” (Levítico 20:10). 
• “Se o ladrão que for pego arrombando for ferido e morrer, quem o feriu não será culpado de homicídio [...]” (Êxodo 22:2). 
• "Se um homem tiver relações sexuais com um animal, terá que ser executado, e vocês matarão também o animal” (Levítico 20:15). 
• "Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a mor-te” (Levítico 20:13). 
• "Se alguém amaldiçoar seu pai ou sua mãe, terá que ser executado. Por ter amaldiçoa¬do o seu pai ou a sua mãe, merece a morte” (Levítico 20:09). 
• "Os homens ou mulheres que, entre vocês, forem médiuns ou consultarem os espíritos, terão que ser executados. Serão apedrejados, pois merecem a morte" (Levítico 20:10). 

Esses são apenas alguns poucos exemplos. Uma questão importante é que todas essas penas dizem respeito apenas aos hebreus e não tinham a intenção de impor isso sobre os outros povos. Entretanto, Jorge Pinheiro (2007, p. 63) nos informa que a particularidade desejada por Moisés só começou a encontrar espaço entre os judeus a partir dos profetas e, principalmente, no pós-cativeiro Babilônico, após o surgimento de Esdras e Neemias. Durante todo o período que vai da invasão de Canaã ao cativeiro babilônico no VI século antes de Cristo, o povo foi politeísta a maior parte do tempo. 

 A PERSPECTIVA DE CRISTO 

Ao contrario de Moisés, a mensagem de Cristo é universal, por isso ela se caracteriza pela compreensão, pela compaixão, pela misericórdia, pelo respeito à dignidade e liberdade humanas, enfim, pelo amor incondicional. Nesse sentido, algo a se considerar é a percepção de que os tempos de Cristo, diferente dos tempos de Moisés, estavam marcados por mudanças significativas no mundo do Mediterrâneo. Desde o século VI antes de Cristo, os hebreus viveram sob o domínio babilônico, persa, grego, e agora, romano. 

A cultura grega havia se espalhado por todo o mediterrâneo, afetando a forma de vida de todos os povos e, os hebreus, por sua vez, haviam vivenciado todo esse processo de mudanças. Eram novos tempos. A fé que Cristo pregou tinha como objetivo o alcance não apenas de uma tribo, ou um povo em particular, mas toda a humanidade. Dessa forma, essa percepção do divino, apesar de ter como fundamento os textos do Antigo Testamento, faz emergir dele uma visão depurada dos elementos absolutos e impositivos da Lei mosaica, enquanto se valorizou a ideia de liberdade, voluntariedade e respeito pela integridade do ser humano. 

Diferente de Moisés, Cristo não tinha a intenção de fundar uma teocracia nem impor uma religião. Sua mensagem é chamada de “boas novas”, e seu núcleo principal é o que chamamos de “Sermão do Monte" (MATEUS, capítulos 5 a 7), onde, ao contrario de Moisés, ele nos ensina a amar os nossos inimigos, bendizer os que nos maldizem, e orar pelos que nos perseguem. 

Sua forma de ver a relação do ser humano com Deus, fez com que ele elogiasse a atitude da Rainha de Sabá, uma rainha africana, comesse com publicanos e pecadores, impedisse o julgamento e a condenação sumaria de uma mulher acusada de adultério, dividisse o pão com os pobres, e, na hora de usar um exemplo máximo do amor ao próximo, citasse a atitude de um samaritano, um praticante de um culto rival do culto judaico em Jerusalém. 

A IGREJA OSCILANTE 

Dessa forma, esses elementos nos permitem afirmar que o que vemos ao longo da historia é uma igreja que oscila entre Cristo e Moisés. Quando ela está mais para Moisés, aparecem as ideias de Estado Teocrático, de uniformização da sociedade, de imposição da fé, de Inquisição, de caça às bruxas, Escravidão negra, de limitação das liberdades individuais, de desrespeito aos diretos dos indivíduos, Teologia da Prosperidade, de barganha com Deus. Todas essas coisas que só podem ser sustentadas a partir de uma leitura equivocada do Antigo Testamento. 

Entretanto, quando o pendulo oscila em direção a Cristo, vemos o ressurgimento de uma visão mais ampla de respeito aos direitos individuais, de defesa das liberdades, de suspensão do moralismo, da voluntariedade, da compreensão do ser humano e suas complexidades e problemáticas, da defesa da justiça, da defesa e proteção dos mais vulneráveis na sociedade, da aceitação das diferenças, da repartição do pão. 

Quando Moisés está em alta, não temos problemas em queimar a Biblioteca de Alexandria, começam a surgir os manuais de inquisição, surgem os Pizarros, as ditaduras em nome de Deus; somente quando Moisés está em alta é possível as perseguições aos que pensam diferente, ou as destruições dos Terreiros de Candomblé, para citar um exemplo mais próximo de nós. 
Entretanto, quando Cristo está em alta, surgem os Franciscos de Assis, os Bartolomé de Las Casas, os Luther King, os Mahatma Gandhi. Somente quando Cristo está em alta acontecem o respeito aos que são diferentes, que creem diferente; acontecem também, por mãos evangélicas, as reconstruções dos Terreiros de Candomblé destruídos pelos fanatismos que ameaçam a civilização (1).  

O objetivo aqui não é negar a importância de Moisés, mas dizer que somente olhando Moisés com os olhos de Cristo, poderemos compreender a essência da fé Cristã e sua vocação para o respeito, para a paz e para a vida. Afinal, uma das frases mais impactantes do sermão do monte é “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9). 

Para encerrar essa fala gostaria de citar duas frases que considero extremamente importantes nesta reflexão. Em primeiro lugar, Voltaire, quando lucidamente questiona os fanáticos franceses do século XVIII: 
Sabes que a intolerância só produz hipócritas ou rebeldes: que funesta alternativa! Finalmente, pretendes sustentar por meio de algozes a religião de um Deus que morreu por meio de algozes e que não pregou senão a amabilidade e a paciência”? (2017, p. 63). 
 Por ultimo, Jesus Cristo, quando chama Pedro de volta à razão: “[...] Pedro: guarde a espada!” (João 18:11). 


  1. Um caso acontecido no Estado do Rio de Janeiro e noticiado pela BBC em abril de 2018. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43879422  

  • Texto apresentado durante Mesa Redonda sobre Religião e Direitos Humanos, no IV SINTEPE (Simpósio de Integração Ensino Pesquisa e Extensão) na UNEB – Universidade do Estado da Bahia – Campus XVII, Eunápolis – Bahia, no dia 29/11/2018.
  • Gilvan Monteiro da Rocha é Graduado em História pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia) , Graduado em Teologia pelo CETADEB (Centro Educacional Teológico das Assembleias de Deus no Brasil), Pós-graduando em Educação e Interculturalidade pelo IFBA – Instituto Federal do Estado da Bahia – Campus Porto Seguro, professor no Centro de Educação Profissional da Costa do Descobrimento – Eunápolis - BA, Pastor da Comunidade Cristã Nova Vida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
Bíblia Nova Versão Internacional 
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf Acesso em 28/11/2018. 
FAVRE, Henry. A civilização Inca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1972. 
JOSEFO, Flávio: História dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. 
PINHEIRO, Jorge. História e religião de Israel: origem e crise do pensamento judaico. São Paulo: Editora vida, 2007. 
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Lafonte, 2017.

Imagem disponível em: https://www.dnoticias.pt/pais/portugal-tem-bom-curriculo-nos-direitos-humanos-mas-violacoes-persistem-HJ3649081 02/04/2019